
Por defeito, gosto de animais. Mas cada vez me é mais difícil incluir os pombos em tão nobre categoria. Parece que agora até são imunes à gripe das aves. Pois, é natural, tendo em conta que são ratos, ainda que alados, parece-me bastante natural que o espirro de uma gaivota ou de uma arara não lhes faça grande mossa. Além disso, é óbvio que os pombos são imunes à gripe das aves. A sífilis também é imune ao escorbuto, por exemplo. É tudo pão do mesmo saco. Nunca vi uma doença infectada com outra doença. Logo, é claro que a gripe das aves passa ao lado dos pombos. Se calhar até se cumprimentam.
Mas fosse só isso que distingue os pombos de outras espécies animais! A sua destreza na arte de voar é de tal ordem que mais parece que as asas só lhe são apresentadas no exacto momento em que levantam voo. Portanto, quem vê um pombo a voar na sua direcção, na única forma que pelos vistos conseguem fazê-lo – destrambelhadamente, claro –, e pensa ‘oh, é óbvio que este pássaro com olhar lunático se vai desviar da minha cabeça’, comete um erro crasso. O efeito desse equívoco: levar com um pássaro nas trombas, e ainda por cima um que parece perder toda a penugem poluída que o reveste sempre que é desviado da sua caótica marcha. Além de ficar com a boca cheia de penas, ainda vai ficar com toda a gente a olhar de lado, porque, afinal de contas, vai parecer que, apesar de apessoado e de transportar uma mala de cabedal com papéis importantes lá dentro, estava a tentar comer um pombo em plena Rua Augusta. Só no tempo dos castelos é que isso de comer pombos vivos era socialmente aceite e até, em certa medida, incentivado. Agora já não. Os pulhas.
Depois, não se pode ir a comer uma merenda ou uma bucha que deixe migalhas. É que os pombos têm um radar qualquer para atacar qualquer resquício alimentar (sobretudo panificado) antes que atinja o chão. Isto pode parecer coisa pouca, mas experimentem ser alguém que viu o ‘Pássaros’ do Hitchcock quando era puto – tendo ficado deveras impressionado com a malvadez de centenas de pequenos bicos organizados –, e depois ver-se rodeado de milhares de pombos só porque deixou cair uma rodela de salpicão da sandes que enfardava. Não é o meu caso, mas tenho um amigo que entra em pânico com isto.
Além de bocados de comida que caiem das mãos ou das bocas de pessoas que merendam em andamento, e, claro, além de comerem aquele pão com três semanas que alguns velhos malucos insistem em oferecer, os pombos comem outras preciosidades. Não são rapazes esquisitos, e até eu, que já vi um porco comer um capacete, fico admirado com a variedade que caracteriza o regime alimentar destes columbídeos. Já vi um a penicar nos restos do Gambrinus – um dos poucos restaurantes em que o preço estipulado para uma malga de sopa chega para pagar 1/3 da minha renda –, para, segundos depois, ir sorver o vomitado de um bêbado que ainda por lá dormia. A refeição terminou com uma espécie de digestivo, bastante popular entre a pombalhada, chamado ‘beata de cigarro’. Aliás, se atentarmos na dieta destes fascinantes seres, a cor e a liquidez dos desperdícios com que, desde os céus, brindam pessoas de fato, estátuas e carros, já não parece tão inexplicável.
Em Lisboa, há mais pombos que pessoas. Poça, se calhar o número de pombos até ultrapassa a média diária de vezes que, no metro, se desvia o olhar da velhota que sofre em pé a implorar em silêncio pelo lugar que ocupamos sem dó nem piedade! Mas o que mais me intriga em relação a estas ratazanas dos céus é que, bem vistas as coisas, os pombos até acabam por ser o equivalente, em pássaro, daqueles gajos labregos das motas que, já com a tropa feita, iam à secundária meter-se com as raparigas giras da nossa escola. Também os pombos, apesar de serem uns maltrapilhos com penas cinzentas e pretas, acabam por sacar as pombas, que são imaculadas, brancas, bonitas e símbolo de uma carrada de coisas bondosas. São as gajas boas da passarada. É assim a vida.